A crise da razão na redação do Enem


Neste final do século XX, estamos testemunhando o despertar de um movimento irracionalista que critica o uso da razão como sendo arma do poder e agente da repressão, em vez de ser instrumento da liberdade humana, como fora proclamado pelo Iluminismo do século XVIII.
Seguindo esta corrente, vemos florescer o individualismo exacerbado, o narcisismo, o vale-tudo, a des-razão que leva ao aniquilamento de todos os princípios e valores.

Mas será que podemos atribuir a culpa pelos descaminhos ao uso da razão? Essa é uma questão importante que levei para meus alunos nas aulas de Produção de Texto que dou à tarde no ensino Médio. Discussões à parte, chegamos à leitura do texto abaixo e convido vocês a lerem também.

A herança iluminista

"A Ilustração foi, apesar de tudo, a proposta mais generosa de emancipação jamais oferecida ao género humano. Ela acenou ao homem com a possibilidade de construir racionalmente o seu destino, livre da tirania e da superstição. Propôs ideais de paz e tolerância, que até hoje não se realizaram. Mostrou

o caminho para que nos libertássemos do reino da necessidade, através do desenvolvimento das forças produtivas. Seu ideal de ciência era o de um saber posto a serviço do homem, e não o de um saber cego, seguindo uma lógica desvinculada de fins humanos. Sua moral era livre e visava uma liberdade concreta, valorizando, como nenhum outro período, a vida das paixões e pregando uma ordem em que o cidadão não fosse oprimido pelo Estado, o fiel não fosse oprimido pela religião, e a mulher não fosse oprimida pelo homem. Sua doutrina dos direitos humanos era abstraía, mas por isso mesmo universal, transcendendo os limites do tempo e do espaço, suscetível de apropriações sempre novas, e gerando continuamente novos objetivos políticos." (Rouanet.)

Esse impulso crítico nascido com a Ilustração, cujos principais representantes, na França, foram Diderot e Voltaire e, na Alemanha, Kant, não se esgotou com ela.

Devemos, neste ponto, diferenciar a Ilustração, enquanto ideias que floresceram no século XVIII (defesa da ciência e da racionalidade crítica contra a fé, a superstição e o dogma religioso; defesa das liberdades individuais e dos direitos do cidadão contra o autoritarismo e o abuso do poder), e cujo principal representante foi Kant, do Iluminismo, considerado como tendência intelectual não-limitada a nenhuma época, que combate o mito e o poder a partir da razão. O Iluminismo, assim entendido, apresenta-se como processo que coloca a razão sempre a serviço da crítica do presente, de suas estruturas e realizações históricas.

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Assim, a tarefa iniciada por Kant, de superação da incapacidade humana de se servir do seu próprio entendimento e ousar servir-se da própria razão, não poderá jamais ser completada. É tarefa que precisa ser refeita a cada momento, a partir das duas condições necessárias: o exercício da razão crítica e da crítica racional.

Hoje, entretanto, os conceitos de razão e de crítica devem ser reexaminados.

Quando falamos em vazão, não mais acreditamos ingenuamente que, só pelo fato de sermos homens, sejamos automaticamente racionais. Devemos, a partir dós estudos de Freud e Marx, admitir que a razão pode também ser deturpadora e pervertida, ou seja, admitir que tanto os impulsos do inconsciente quanto a ideologia (ou falsa consciência) são responsáveis por distorções que colocam a razão a serviço da mentira e do poder.

Exemplificando, quando a racionalidade assume as vestes de razão de Estado ou de razão económica (como no caso do Brasil), estamos lidando com uma visão parcial e instrumental da razão que tenta adequar meios a fins. É a razão que observa e normaliza, razão que calcula, classifica e domina, em função de interesses de classes e não dos interesses da sociedade como um todo. E, se o poder que oprime fala em nome da racionalidade, para combatê-lo parece necessário contestar a própria razão.

Esse tipo de racionalidade deve ser contestado, mas não através do irracionalismo e, sim, pela atividade crítica da razão mais completa e mais rica, que dialoga e se exerce na inter-subjetividade.